Homens que são mulheres | Artigo

close em rosto de travesti passando batom

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Publicado em: 26 de abril de 2011

Revisado em: 13 de agosto de 2021

As travestis sofrem preconceitos variados, e estão expostas a perigos constantes, em uma sociedade que tenta invisibilizá-las e negar-lhes direitos.

 

De todas as discriminações sociais, a mais pérfida é a dirigida contra as travestis.

Se fosse possível juntar os preconceitos manifestados contra negros, índios, pobres, homossexuais, garotas de programa, mendigos, gordos, anões, judeus, muçulmanos, orientais e outras minorias que a imaginação mais tacanha fosse capaz de repudiar, a somatória não resvalaria os pés do desprezo virulento que a sociedade manifesta pelas travestis.

Quem são essas jovens travestidas de mulheres fatais, que expõem o corpo com ousadia nas esquinas da noite e na beira das estradas? Apesar da diversidade que as distingue, todas têm em comum a origem: são filhas das camadas mais pobres da população.

 

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A homossexualidade é tão velha quanto a humanidade. Sempre existiu uma minoria de homens e mulheres homossexuais em qualquer classe social; caracteristicamente, no entanto, travestis só aparecem nas famílias humildes.

Na infância, foram meninos com jeito afeminado, que se tivessem nascido entre gente culta e com posses, poderiam ser profissionais liberais, artistas plásticos, empresários, costureiros, atores de sucesso. Mas, como tiveram o infortúnio de vir ao mundo no meio da pobreza e da ignorância, experimentaram toda a sorte de abusos: foram xingadas nas ruas, ridicularizadas na escola, violentadas pelos mais velhos, ouviram cochichos e zombarias por onde passaram, apanharam de pais e irmãos envergonhados.

Em ambiente tão hostil, poucas conseguem concluir os estudos elementares. Na adolescência, com a autoestima rebaixada, despreparadas intelectualmente, saem atrás de trabalho. Quem dá emprego para homossexual pobre?

Se para os mais ricos com diploma universitário não é fácil, imagine para elas. O máximo que conseguem é lugar de cozinheira em botequim, varredora de salão de beleza na periferia ou atividade semelhante sem carteira assinada.

Vivendo nessa condição, elas aprendem com os parceiros de sina que bastará hormônio feminino, maquiagem para esconder a barba, uma saia mínima com bustiê, sapato alto e um bom ponto na avenida para ganhar numa noite mais do que o salário do mês.

Que autoritarismo preconceituoso é esse que lhes nega acesso à assistência médica, direito mínimo garantido pela constituição até para o criminoso mais sanguinário?

Uma vez na rua, toda travesti é considerada marginal perigosa, sem nenhuma chance de provar o contrário. Pode ser presa a qualquer momento, agredida ou assassinada por algum psicopata, que nenhum transeunte moverá um dedo em sua defesa. “Alguma ‘ele’ deve ter feito para merecer”, pensam todos.

Levada para a delegacia irá parar numa cadeia masculina. Como conseguem sobreviver de sainha e bustiê em celas com 20 ou 30 homens, numa situação em que o mais empedernido machão corre perigo, é para mim um dos mistérios da vida no cárcere, talvez o maior deles.

A condição de saúde das travestis é precária. Não existe um serviço de saúde com endocrinologistas para orientá-las a respeito dos hormônios femininos que tomam por conta própria. Muitas injetam silicone na face, nas nádegas, nas coxas, mas sem dinheiro para adquirir o de uso médico, fazem-no com silicone industrial comprado em casa de materiais de construção, injetado por pessoas despreparadas, sem qualquer cuidado de higiene. Com o tempo, esse silicone impróprio escorre entre as fibras musculares dando origem a inflamações dolorosas, desfigurantes, difíceis de debelar.

Ainda as que têm o vírus da aids encontram algum apoio e assistência médica nos centros especializados, locais em que os funcionários estão mais preparados para aceitar a diversidade sexual. Nos hospitais gerais, entretanto, poucos conseguem passar da portaria, barradas pelo preconceito generalizado, praga que não poupa médicos, enfermeiras e pessoal administrativo.

Os hospitais públicos deveriam ser obrigados a criar pelo menos um posto de atendimento especializado nos problemas médicos mais comuns entre as travestis. Um local em que pudessem ser acolhidas com respeito, para receber orientações sobre uso e complicações de hormônios femininos e silicone industrial, prevenção e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis e práticas de sexo seguro.

A saúde pública não pode continuar dando as costas para essa minoria, só porque elas decidiram adotar a identidade feminina, direito de qualquer um. Quem somos nós para condená-las?

Que autoritarismo preconceituoso é esse que lhes nega acesso à assistência médica, direito mínimo garantido pela constituição até para o criminoso mais sanguinário?

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